DESPERTAR DAS ÁGUAS --Poema de Antonio Miranda --
letras de Antonio Miranda
e músicas de XULIO FORMOSO (Venezuela)
Com os cantores
GEORGE DURAND
I
Águas estagnadas desde tempos imemoriais,
águas de chuvas empoçadas, nas margens
do rio, águas diluvianas evaporando-se
e retornando mornas, refeitas, minerais.
como instintos domados, vazando
pelas várzeas, brenhas, banhados.
Águas turvas sob um céu de abismo,
gotas d’água marcando águas lúcidas.
aos clamores e valores humanos.
paisagens de espanto e estupor.
Todas, e árvores tão grandes! Tudo
tão longe ali tão perto e incerto.
e pássaros pairando nas alturas.
Águas feitas de suores dissolutos,
daqueles povos plantados na terra,
sem remissão e sossego. Condenados.
como alimárias ribeirinhas domesticadas.
Esperançosos. Simples. Primitivos.
Chuvas em movimento constante, andantes,
Erradias, intempestivas. Seguidas de sóis
abrasantes, ardentes, inclementes. Chuvas
torrenciais e estios intermitentes, insistentes
que secam a terra, estirões distantes. Calores.
Éramos tão pequenos naquelas águas
todas, e as árvores tamanhas!
Andávamos descalços, nus, a esmo,
inocentes de tantas maldades atávicas,
tão indefesos apesar de rezas e de missas.
Pisando poças de água parada, brejos
vizinhos perto de casa — tão distantes!
correndo e gritando, pulando troncos
caídos, cipós e raízes aflorantes.
Tropeçando, levantando e entrando
nos espelhos de nuvens trêmulas,
refletindo espaços andantes, instáveis.
III
A sensação lívida e temerosa das ações
Inconseqüentes, livres de vigilância
E cuidados. Soltos. Em algazarra.
Que inocente sensualidade! Águas transpirantes.
ausentes de qualquer responsabilidade.
Corpos imberbes roçando, atritando,
como peixes resvalantes entre ervas
flutuantes, agarrando-se, arfantes,
enfrentando-se com fúria, extenuados.
Viçosos como arrebentações vegetais,
como animais libertos, triunfantes.
pelo cansaço, pela fadiga, pelo peso
do corpo. Sobre a presa inerte, ofegante,
mordendo-a com ímpeto e sentindo
um sabor álacre de saliva e espanto.
Um tremor repentino, por todo o corpo,
um prazer assustado e intrigante.
Uma cega, avessa, e
súbita excitação.
de um destino selado, de uma identidade
aflorando
subjugante
na perplexidade
das águas trêmulas,
calafrio
e vislumbre.
Com uma culpa entranhável,
tomados de vergonha e encanto.
Biblioteca da Uniderp – Campo Grande, MS dia 24 maio às 17 hs.
Despertar das Águas (Thesaurus, Brasília, 2006) é um marco na produção poética de Antonio Miranda. A forma é livre, a linguagem nada tem de ameno, ao contrário, é às vezes decididamente amarga, na expressão do autor. São versos de memória e autoperquirição, desde o apego do nascituro à paz amorosa do útero materno até a revolta contra a mão destruidora do homem. O poema que estende o título ao conjunto é fortemente confessional, com metafóricas “águas decompostas, represadas, / como instintos domados”. “Meu Pai”, “Minha Mãe”, “Cemitério Familiar”, “Confissão”, “Um Desmemorial”, “Diário sem Autoria”, “Rio de Janeiro Madrugada 1957”, “Avenida Corrientes” (em que o pessoal e o social confluem), “Eu me Deleto” (em que, como em nenhum outro texto que eu conheça, a internet emerge como o ar, o meio ambiente do poeta) são composições que deixam marca no leitor. E acrescentam ao poeta uma dimensão nova. –
Anderson Braga Horta - Março 2006.
Armindo Branco MENDES CADAXA, RJ
Capa de Tagore Alegria a partir de um trabalho gráfico de Patrícia L. Boero (Argentina).
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